O blog recebe e publica abaixo o artigo da pesquisadora da EMBRAPA Pantanal, Emiko Kawakami de Resende:
Interpretações inadequadas no manejo da pesca no Pantanal
Por:
Emiko Kawakami de Resende (*)
Ultimamente vem ocorrendo uma série de interpretações equivocadas das reais causas que poderiam levar à redução dos estoques pesqueiros no Pantanal. São várias, dentre as quais podemos citar, em primeiro lugar, a degradação ambiental e ainda, a intensidade das inundações e atrelados a elas, a pesca, quer seja profissional ou amadora/esportiva.
O principal fator ecológico que regula a abundância e a diversidade de peixes em ambientes inundáveis é o que chamamos cientificamente de pulso de inundação, que nada mais é do que o encher e secar dos rios e da planície de inundação a cada ano. Mas como isso afeta os peixes? Através dos processos biológicos mais importantes e sensíveis para qualquer espécie animal: a disponibilidade de alimentos e o sucesso reprodutivo!
Como isso ocorre? As áreas da planície pantaneira, quando são inundadas pelas cheias dos rios, formam um vasto ambiente onde se desenvolvem as comunidades fitoplanctônica (algas livres microscópicas), zooplanctônica (animais microscópicos de vida livre), perifitônica (algas microscópicas fixas a plantas) e perizoonica (invertebrados associados ao perifiton) que suportam a alimentação e o desenvolvimento de larvas e alevinos de peixes em uma produção mais elevada que se fosse proveniente de áreas permanentemente inundadas ou apenas da produção proveniente do canal do rio.
Em rios onde o pulso de inundação está atuante, como, por exemplo, no Rio Cuiabá, na região do Porto Cercado, onde se encontra a Reserva Particular de Patrimônio Natural do SESC, observa-se uma comunidade de peixes altamente diversificada e rica em espécies herbívoras como os pacu-pevas e ximborés, detritívoras como curimbatás e sairus e onívoros como piraputangas, sardinhas, lambaris e sauás. Estas espécies são a base da cadeia alimentar dos peixes carnívoros como dourado, pintado, cachara, jurupensém e jiripoca, dentre outros.
Em resumo, no processo da enchente/cheia, as áreas inundadas têm a sua vegetação alagada, ocasião em que parte morre e se decompõe, formando os detritos orgânicos, fonte de alimento dos peixes detritívoros. Outra parte funciona como substrato/filtro que retém os sedimentos e a matéria orgânica dissolvida, servindo como substrato para o desenvolvimento de algas e microorganismos animais (bactérias, tecamebas, etc). Finalmente, um terceiro estrato fornece alimento aos peixes na forma de flores, frutos e sementes.
Além disso, a inundação também propicia o desenvolvimento de ricas comunidades de insetos aquáticos que servem de alimento aos peixes. Assim, a inundação proporciona abundantes e variadas fontes alimentares para peixes detritívoros, herbívoros, insetívoros e onívoros que são a base da cadeia alimentar dos peixes carnívoros e de outras espécies animais que as consomem como aves aquáticas, jacarés, lontras e ariranhas.
A produção de alimentos aos peixes na planície inundável é, portanto, altamente dependente da intensidade da inundação: quanto maior a inundação, maior a área alagável, maior a produção de alimentos e conseqüentemente, maior é a produção de peixes. Ou seja, há uma relação diretamente proporcional entre o nível da enchente e a produção de peixes no Pantanal. Alguns pesquisadores chegaram a desenvolver modelos matemáticos para explicitar essa relação e assim enfatizar a importância da manutenção destas áreas inundáveis.
A dinâmica das enchentes no Pantanal é altamente dependente de fenômenos globais como El Niño e La Niña. Observando os registros das alturas do rio Paraguai desde 1900, em Ladário, verifica-se que as cheias do rio flutuaram em alguma coisa parecida com sete anos de cheias grandes e sete anos de cheias pequenas, de 1900 até 1960. De 1960 a 1974, durante 14 anos, as cheias foram muito pequenas e se dizia que o Pantanal ia secar e virar um enorme deserto. As populações locais relatam que a produção pesqueira foi muito reduzida nesse período.
Por outro lado, nesse período, a pecuária desenvolveu-se extraordinariamente, ocupando as áreas ao longo dos rios que possuem pastagens de excelente qualidade, devido aos solos mais ricos adubados pelas inundações. Poucos acreditavam que o Pantanal fosse encher novamente. Esse quadro modificou-se radicalmente em 1974, quando sobreveio uma grande cheia que causou enormes perdas de gado, onde os animais rodaram com a enchente ou morreram ilhados ou de fome por falta de alimento. Entretanto, essa fase de grandes cheias que se iniciou em 1974, propiciou renovação espantosa dos estoques de peixes, persistindo de 1974 a 1998, ou seja, durante mais de 20 anos.
A partir da década de 1980, os acessos ao Pantanal melhoraram e embasada nessa grande produção de peixes, houve grande desenvolvimento do setor turístico pesqueiro da região. O auge foi a vinda de quase 60.000 pescadores amadores/esportivos em 1999, registrados pelo Sistema de Controle da Pesca de Mato Grosso do Sul e responsáveis por cerca de 80% do total de peixes capturados na região naquele período.
A partir de 1998 ocorreram cheias menores, cujo mínimo ocorreu em 2005, quando a água do rio Paraguai não extravasou para a sua planície de inundação. Dessa forma, como a produção pesqueira é totalmente dependente das cheias e como as mesmas foram reduzidas, houve também redução gradual nessa produção. Nessas últimas décadas, houve também a ocupação do Centro-Oeste pelas atividades agropecuárias que se desenvolveram sem os devidos cuidados com a conservação de solos. Muito solo foi erodido nos planaltos, levados pelos rios e depositado no Pantanal. As calhas dos rios na planície pantaneira foram entupidas de areia. Em casos mais drásticos, ocorre o soerguimento do leito do rio acima da planície e quando as margens se rompem (arrombados), ocorre o extravasamento de águas para a planície, formando enormes áreas permanentemente inundadas e mesmo na seca o rio não volta mais ao seu leito, como está acontecendo há mais de 20 anos no rio Taquari. Nessa situação, como o pulso de inundação é perdido, ou seja, não enche e seca a cada ano, há redução drástica na produção de alimentos para os peixes e no seu sucesso reprodutivo e, portanto, uma redução na produção pesqueira, como se observou no rio Taquari, outrora um dos rios mais piscosos do Pantanal. Hoje, em função desta realidade, os 5.000 km2 permanentemente inundados do rio Taquari, no Pantanal, funcionam como enormes desertos aquáticos e produzem muito pouco peixe e não servem para a pecuária.
A ocupação agropecuária dos planaltos circundantes ao Pantanal influi na produção pesqueira pela remoção das matas ciliares (fonte de alimento aos peixes na forma de folhas, flores, frutos e sementes) e pela introdução de contaminantes agrícolas, afetando a produção de peixes na sua fase mais sensível, a reprodução, pois a maioria dos peixes de valor econômico é migradora e se reproduz nas cabeceiras dos rios na região dos planaltos.
Os peixes apresentam, ainda, respostas interessantes a estresses ambientais, particularmente no que tange ao tamanho para iniciar a reprodução. Alevinos de curimbatás produzidos em cativeiro se reproduzem no primeiro ano de vida, com tamanhos entre 15 e 20 cm, como pode ser observado em qualquer tanque de piscicultura, em resposta ao estresse do confinamento em tanques. O mesmo acontece para peixes de couro como pintados e cacharas.
O que observamos hoje, agindo sobre as populações de peixes no Pantanal, é um somatório de todos os fatores descritos anteriormente, levando à redução dos estoques pesqueiros. Por todo o exposto, os pescadores profissionais não são os principais responsáveis pela redução dos estoques pesqueiros. São apenas vítimas dessa situação, pois necessitam capturar um mínimo para a sua sobrevivência, o que aos olhos de leigos pode parecer muito.
A gestão da pesca vem desprestigiando essa categoria e, cada vez mais, aumentando as restrições à sua atividade, chegando finalmente à proposição de moratória da pesca profissional. Entretanto, aos olhos dos que conhecem e labutam a vida inteira sobre o assunto, não será proibindo a pesca, no caso, apenas a profissional, que teremos o retorno dos peixes.
Estamos vivendo uma época onde fica patente a necessidade de inclusão social das comunidades mais carentes. Uma política adequada para a pesca profissional, que no Pantanal é praticada de forma artesanal, deve ser de apoio e melhoria de vida para essa categoria, pois como em todo o Brasil, é composta, em sua quase totalidade pelos menos favorecidos e com baixo grau de escolaridade. Além do mais, eles são os detentores do chamado "conhecimento ecológico tradicional", que os tornam profundos conhecedores do ambiente, constituindo um valioso patrimônio cultural da nação, que vem sendo transmitido de pai para filho há muitas gerações. Para esse segmento, é necessário que haja uma política que de fato realize a inclusão social, possibilitando acesso à educação, capacitação e treinamento, bem como apoio para o desenvolvimento de novas formas de aproveitamento do pescado. É necessário que haja agregação de valor à atividade, seja desenvolvendo formas de processamento de pescado, produzindo filés de peixes, pratos semi-prontos, seja utilizando o couro de peixe para produção de artesanatos como bolsas, cintos, sapatos, agendas ou, ainda, utilizando vértebras e escamas também para artesanato.
É recomendável ainda, aproveitar outras espécies de peixes abundantes e que hoje não são utilizados como cascudos pretos, sairu-bois e curimbatás. Afinal, existem 263 espécies de peixes no Pantanal e utilizamos apenas 15 a 20 espécies. Com isso, estaremos gerando emprego e renda para essa classe social e reduzindo o esforço de pesca sobre as espécies consideradas nobres e de maior interesse para a pesca esportiva.
Para que a pesca se torne efetivamente sustentável há que se ter um marco regulatório, onde haja mecanismos que propiciem a reposição dos estoques de peixes e a manutenção da atividade pesqueira, em consonância com as flutuações da água no Pantanal. Para isso, há que se fazer uma gestão participativa que agregue todos os usuários da pesca, tanto do setor da pesca profissional artesanal como do setor turístico pesqueiro, considerando como o sistema funciona e como eles irão se colocar frente a essa condicionante. Através de uma gestão participativa, pode se lançar mão de acordos de pesca, experiência bem sucedida na região amazônica, buscando soluções que sejam convenientes tanto para os peixes como para os homens que vivem dos peixes. A Embrapa Pantanal, juntamente com outros órgãos de pesquisa, tem hoje informações e experiência que podem contribuir para a implantação do manejo participativo dos recursos pesqueiros no Pantanal.
Finalizando, é importante salientar que para a manutenção dos estoques pesqueiros do Pantanal, é necessária a adoção de políticas adequadas de uso e recuperação dos ambientes que já se encontram degradados nos planaltos, aliadas a práticas econômicas que sejam efetivamente sustentáveis. Eis o desafio: a integração das pesquisas com as políticas públicas e a atuação de governantes e gestores de pesca responsáveis e comprometidos com a conservação dos recursos naturais e com a inclusão social.
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(*) Emiko Kawakami de Resende (
emiko@cpap.embrapa.br), é biologa, doutora em ciências e pesquisadora da Embrapa Pantanal, Corumbá-MS.