Ética canina: O bom exemplo
Crônica
Ética canina: O bom exemplo
Por Félix Nunes (*)
Tamanho médio, corpo amarelo, cara preta, focinho chato, ar dócil e jeito de pedinte inveterado. Esse o perfil de um cão desconhecido que se acercou de mim na pescaria. O dia está ruim para meu lazer, com peixes afugentados por causa da refrigeração das águas provocada pelo frio das madrugadas anteriores. E este fato fará como que as iscas—dois bons pedaços de fígado e coração de boi—se transformem em alimento de meu parceiro improvisado. Ele saboreia minha oferta de modo rápido, como fazem todos os carnívoros domésticos de sua raça. Em seguida, abana o rabo e me olho fixamente, expressando aquele conhecido gesto de agradecimento do mundo canino. Começo a arrumar a tralha e o cão intruso se retira. Caminha rápido, interrompendo as passadas de vez em quando, só para me olhar.
Cheguei à margem do rio por um caminho difícil, marcado por subida, barranco escorregadio e uma cerca de arame farpado para atravessar. Mas agora, olhando a caminhada do cão, constato uma saída melhor. É por uma trilha na propriedade do dono dele, vedada por dois portões de madeira. Como acho que ele ( o cachorro) tornou-se meu amigo, sigo despreocupado no novo rumo. Contudo, ao pôr a mão na primeira porteira (para ser aberta bastava empurra-la), a surpresa: o Bolívar (nome do cão, que ficaria sabendo em contato com seu dono) late forte, rosna feio e me mostra os dentes afiados—sinalizando a disposição de me abocanhar, caso eu não desistisse do intento.
Mal -agradecido? Não! Ele cumpria seu papel e nesse quesito não havia acordo. Sua fidelidade ao dono legítimo se sobrepõe a mais forte bondade que expressasse a estranho movido por agrado eventual.
Só a intervenção de seu dono o fez quietar-se e voltar a me encarar como amigo. E então me lembrei do fuá de Brasília. E imaginei quanto bom seria à sociedade se fosse transposto ao ser
humano esse mérito canino. Ninguém mais compraria nem venderia votos, ninguém se locupletaria ou fecharia os olhos a alguma obrigação por conta de favores recebidos. Todos seriam éticos e incorruptíveis—como o cão Bolívar.
(*) Félix Nunes, 74, é jornalista, escritor e editor do jornal "Grito Grande"; de sindicatos de trabalhadores da região de Aquidauana e Anastácio, em Mato Grosso do Sul.
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