Artigo: Um quadro político, por Ibsen Pinheiro
Um quadro político
Por Ibsen Pinheiro (*)
Estou convencido de que o deputado José Dirceu dificilmente terá no plenário da Câmara um julgamento justo, mesmo que seja absolvido, como não terá um julgamento imparcial se for condenado, por uma única razão: não se trata de estabelecer uma relação simplista entre culpa e punição, melhor traduzida pela noção judaico-cristã de responsabilidade moral. Pecado com expiação é como se exerce a justiça divina, sem necessidade de qualquer processo legal, devido ou não.
Já no caso do ex-ministro Chefe da Casa Civil, estamos tratando é da justiça dos homens, onde a verdade presumida se alcança por meio de uma sentença - judicicial ou não - correspondente a uma convenção pragmática destinada a estabelecer a segurança jurídica nas relações sociais, para o que está autorizada a acertar ou errar com o consentimento da consciência coletiva, pagando, porém, um pedágio: o devido processo legal. Nele, o rigorismo dos procedimentos é tão importante quanto as conclusões, com base num princípio imutável - a presunção de inocência e seu principal corolário, o de que a condenação de um inocente não vale a absolvição de cem culpados.
Tenho ouvido e lido, no bojo desta crise, que esse princípio, embora universal, não vale para os processos políticos, como se, por serem políticos, não fossem processos e se regulassem por uma jurisprudência brasileira associada à pizza, segundo a qual se inverte o ônus da prova e é o acusado que deve provar-se inocente. Curiosamente, por essa interpretação a presunção de inocência só se aplica aos que dela não necessitam, por não serem suspeitados, denegridos ou mesmo acusados. Não se pense que disso é culpada a Câmara dos Deputados, pois numa crise dessa extensão, profundidade e ampla repercussão, ela é tão vítima quanto as suas vítimas
Age-se como se os processos políticos (tanto como os judiciais, os administrativos ou mesmo os esportivos) não estivessem subordinados aos parâmetros do artigo 5º da Constituição Federal relativos ao contraditório e à ampla defesa. A recente e necessária intervenção do Supremo Tribunal Federal, em correta e corajosa decisão de seu presidente, Ministro Nelson Jobim, sustou a violação praticada pela Mesa da Câmara dos Deputados, que havia suprimido uma instância de defesa. Nas críticas que se seguiram à ordem judicial, desprezou-se o postulado, também do artigo 5º, segundo o qual nenhuma lei excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Já o princípio anti-pizza, seja qual for sua extensão, no caso presente tem um nome a uma vítima: José Dirceu. Com ele cassado, já que Luiz Gushiken não tem mandato, estarão satisfeitos todos os apetites, o dos inocentes úteis e também o dos culpados de clero baixo, esquecidos ou voluntariamente marginalizados, alguns por sua própria desimportância e todos à espera de uma cabeça coroada no cesto da gilhotina. Conscientemente ou não , torcem pela degola ilustre, com fundada esperança na sabedoria sertaneja que vê passar uma boiada enquanto as piranhas estão ocupadas. A turba que livrou Barrabás nada sabia de pizzas e piranhas, mas acertou em cheio.
Não tenho como avaliar se José Dirceu sabia ou não do mensalão. A acusação, por enquanto, sente-se dispensada da prova e inverteu a presunção - "se não sabia, devia saber" - estranha premissa investigatória que remete os acusados à incerteza clássica de todos os réus políticos: denunciar o processo ou ajustar-se à sua lógica. Quase todos, com a ilustre exceção de Dmítrov, sucumbiram à esperança, espécie de síndrome de Estocolmo que afeta todas as vítimas, de Sócrates a Prestes, passando por Giordano Bruno ou Dreyfus, sem esquecer o mais ilustre de todos, condenado pelo Sinédrio de Jerusalém.
Já se percebe, no entanto, que José Dirceu, praticou dois gestos insólitos no amesquinhamento geral dos comportamentos: assumiu suas responsabilidades políticas e negou-se a renunciar, muito mais do que fizeram outros, acima ou abaixo de sua hierarquia e comprovando o que já se sabia, que ele é agora, no sofrimento, o que foi nos momentos de glória: um quadro político.Só por isso já merece respeito.
(*) Ibsen Pinheiro é ex-deputado federal (PMDB) Foi presidente da Câmara dos Deputados durante o processo que destituiu Fernando Collor da presidência da República, em 1992
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