Artigo: A cassação de Dirceu, por Valter Pomar
A cassação de Dirceu
A cassação de José Dirceu é o grande assunto do noticiário, nesta virada de novembro para dezembro.
Pena: muito mais importante é o desempenho do Produto Interno Bruto, que demonstra, mais uma vez, quais as decorrências de uma política de juros altos e superávit primário escorchante.
Aliás, quem assistiu ao discurso do líder do Partido da Frente Liberal (PFL), feito durante a sessão da Câmara que cassou o mandato de José Dirceu, deve ter pensado que o mundo está de ponta-cabeça: um Maia acusando de conservadora a política econômica do governo Lula. Pior: dizendo que esta política privilegia o capital financeiro!!!
Neste contexto, o espaço dado para a cassação de José Dirceu é mais um sinal de que o PT e o governo saíram das cordas, mas continuam na defensiva. Pois enquanto seguimos às voltas com esta e outras possíveis cassações, a direita ensaia o discurso com o qual pretende nos impor uma derrota eleitoral, política e ideológica nas eleições de 2006.
Se não houver uma mudança urgente na política & na política econômica, corremos o risco de sermos derrotados sob a acusação de termos aplicado um programa conservador, utilizando para isto métodos também conservadores! E teremos o desgosto de ver, na campanha de 2006, partidos de centro-direita fazendo, contra nós, um discurso supostamente progressista.
Isto posto, é óbvio que há uma enorme relação disto com aquilo, da situação política geral com a cassação de José Dirceu. Pois como já se disse repetidas vezes, José Dirceu é um dos grandes responsáveis pela "estratégia de centro-esquerda", que nos colocou nesta enrascada.
É evidente que os deputados da direita votaram pela cassação de José Dirceu, com o objetivo de golpear o PT e o governo. Mas é preciso perguntar por quais motivos eles tiveram êxito nessa votação em particular. Afinal, nesta mesma Câmara dos Deputados o governo e o PT já colheram algumas vitórias.
A resposta é óbvia, mas tem sido esquecida por alguns analistas: a direita teve êxito em cassar José Dirceu, devido a erros cometidos pelo Partido, pelo governo e pelo próprio Dirceu. Foram estes erros que criaram um ambiente propício para que a direita nos atacasse, nos colocasse na defensiva e, agora, tirasse o mandato de um importante deputado do PT.
O Partido ainda não fez um balanço completo acerca desses erros. É bom que o faça e rápido, sob pena deles continuarem produzindo mais vítimas.
Na minha opinião, o erro fundamental é de estratégia: a política de "centro-esquerda" que aparentemente ajudou a fazer de Lula presidente da República, não está dando conta dos desafios de governar e mudar o país. Pois suas premissas nos impedem de romper com a hegemonia do capital financeiro, bloqueiam as reformas estruturais que o país precisa, contém nosso crescimento eleitoral, dificultam nossas relações com os movimentos sociais e com os partidos de esquerda.
Deste ponto de vista, a cassação de José Dirceu tem um componente trágico. Afinal, ele foi um dos principais formuladores e certamente o grande operador da política que, em última análise, conduziu o governo ao impasse estratégico, o PT ao fundo do poço e ele próprio à guilhotina.
Para fazer o Partido aceitar a política de centro-esquerda, José Dirceu fez uso, muitas e repetidas vezes, do carisma e da mística que lhe são atribuídos. Para ser mais exato, ele construiu uma imagem pública que serviu para aplainar resistências, especialmente na esquerda. Muitos e muitos militantes do Partido aceitaram a implementação desta política, por confiar em José Dirceu, não propriamente por confiança na política.
É claro que há uma distância entre a vida real e o mito criado. Os que refletiram sobre 1968, Ibiúna, Cuba, Molipo e outros episódios sabem disso. Mas o fato politicamente relevante é que, na campanha contra a cassação de Dirceu, o velho, seus amigos apelaram seguidas vezes para os feitos de Dirceu, o novo. Neste ponto, a tragédia incorporou um elemento de farsa: o deputado que conduziu nosso Partido para o reino do pragmatismo institucional apela, em sua defesa, para a mística do revolucionário.
Para alguns, isto talvez confirme a tese de Tarso Genro, segundo a qual as peripécias delubianas revelam a sobrevivência do "bolchevismo" entre nós. Na verdade, não há nada mais distante do bolchevismo do que José Dirceu e sua política. Prova disto é que Tarso Genro, um ex-comunista convicto, defendia e defende até hoje a mesma política, embora como tantos outros esteja, agora, enfrentando certa dificuldade para conviver com suas consequências.
O grande desafio do PT tem a ver com isto: perceber que a cassação de José Dirceu, assim como todo o resto da crise que se abate sobre nós, é consequência de uma linha política, que precisa ser alterada, de cima a baixo. Se não tivermos êxito nisto, vamos girar em falso.
Qual papel Dirceu terá neste debate? Manterá as mesmas posições que antes? Reconhecerá seus erros políticos e ajudará na reorientação do Partido, inclusive no combate frontal contra Palocci? Ou irá para a ultra-esquerda, como fez o também mítico Carlos Marighella, depois do golpe de 1964?
O tempo dirá. O fundamental é que o Partido, se quiser sobreviver, precisa fazer a crítica teórica e prática do edifício político e organizativo montado por José Dirceu: o abandono do socialismo e da revolução como norte programático e estratégico; a principalidade conferida à disputa eleitoral-institucional; o pragmatismo nas alianças; o centralismo burocrático; a transformação da direção nacional numa máquina com baixa capacidade de formulação; as finanças dependentes de contribuições empresariais. Tudo isto e muito mais precisa ser detalhadamente destrinchado e criticado, pois foi isso que nos trouxe aonde estamos agora. E é isso que precisamos criticar, se quisermos dar a volta por cima.
Valter Pomar
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